O SOM DA MEMÓRIA
Luiz Antônio Costa.
Crônica publicada no livro "O Som da Memória - I" de 2012 e na Rede Hoje em 2016. Hoje, o texto é parte da apresentação da Cia. Borboletas no Aquário, um grupo patrocinense faz da contação de histórias, música e teatro, em Patrocínio, MG, formado só de mulheres - Jéssica Borges, Laira Arvelos, Letícia Borges e Luciana Borges - usa o texto abaixo em parte dos eventos que participa. No ano passado receberam homenagem em Brasilia, numa parceria entre embaixadas de vários países, Câmara dos Deputados e Associação Amigos das Histórias, que reuniu contadores de histórias de todo país para apresentações e troca de conhecimentos
“Hoje num vô vê o CAP jogá, não. Vou fazer sete quilômetros de cerca de arame farpado” ou “esse programa num tem audiência não, podexá”. Assim, engraçado, com tiradas e bordões criativos, Humberto Cortes acordou os patrocinenses, todas as manhãs – de segunda a sábado - de 1959 até 2005.
Era irreverente no tornando celebre pelas suas colocações de duplo sentido e as frases de Pára-choque de Caminhão. Um bordão criado pelo ele, “Podexá”, tornou-se gíria, e chegou a ser gravado em música da dupla sertaneja Gino e Geno, amigos pessoais de Humberto Cortes.
No tempo em que o rádio era o um equipamento fundamental, especialmente para quem morava na zona rural, o programa do Humberto Cortes era uma espécie de correio com telegrama falado. As mensagens devem ser curtas, porque os recados são muitos, se forem grandes, não dá tempo de falar todos.
Funciona assim: a pessoa que precisa avisar algo para alguém que está na zona rural vai até a emissora, deixa um recado curto com a informação, na certeza de que, das 7h00 às 8h00, toda a zona rural estará ligada, justamente aguardando essas informações. E é daí que surgem as passagem mais cômicas e, em boa parte, de duplo sentido. O Cortes jura que não é intencional.
Certa vez, a mulher de um pequeno produtor de queijo vem à cidade receber dinheiro de dois comerciantes. Como ela recebe só de um e o outro prometeu pagamento para o dia seguinte, ela coloca o aviso que tem que ficar na cidade até o outro dia.
O Humberto Cortes manda o resumo do recado:
- Alô, alô seu João, na fazenda tal, região de Córrego da Mara, dona Maria avisa que não vai hoje porque o negócio não entrou tudo. Amanhã entra o resto e ela vai.
Outro:
A mulher veio à cidade para dar à luz a um filho. Foi parto normal, correu tudo bem e dois dias depois ela estava bem e já tinha condições de ir embora. Manda avisar ao marido para esperar no ponto do leite – onde ficam os latões de leite que o caminhão recolhe (aqui um adendo: o caminhão que transporta o leite é o ônibus, o caixeiro viajante e o correio, nesta época, porque é o único meio diário garantido). E o Humberto Cortes, mais uma vez, resume:
- Alô, senhor fulano, dona beltrana avisa que já ganhou o nenê. É “menino homem” e os dois passam bem. Amanhã, pode levar o cavalo no ponto que ela já agüenta. Evidente que ela agüentaria cavalgar do ponto do leite até à sede da fazenda.
São inúmeras histórias. Numa delas, quase deu separação, mas não foi culpa do locutor. As Casas Manuel Nunes foram patrocinadoras do “Manhã Sertaneja” do famoso locutor durante toda a existência do programa. E mandava os nomes dos compradores como parte inteligente do marketing. “O senhor fulano, da fazenda tal, sabe economizar. Foi ao Manuel Nunes e comprou um capa de chuva e frerramentas. Vai trabalhar protegido e pagou menos”.
Numa dessas, o Humberto Cortes diz:
“O senhor fulano de tal, da Barra do Salitre não vai ter mais problemas de coluna, vai dormir muito melhor. Comprou um colchão de casal novinho no Manuel Nunes”. Mas, o tal fazendeiro tinha levado o colchão pra casa da amante. A esposa, lógico, quis saber da história. O esperto produtor explicou a ela que “esquecera” o colchão na cidade. Voltou e comprou outro colchão. No dia seguinte, o Cortes manda: “O fulano é mesmo inteligente e sabe economizar. Gostou tanto do colchão que voltou ao Manuel Nunes e comprou outro igualzinho”. O fazendeiro, provavelmente, não deu conta de explicar essa.
Outra característica do Côrtes era o improviso nas peças publicitárias.Certa vez, falando das propriedades de um produto: “Na farmácia tal, você tem Biotônico tal. O seu Joaquim toma, fica mais animado, trabalha mais alegre, fica muito mais disposto e a dona Geralda num acha bão. Não, podexá!”.
Acordar todos os dias com aquela “leréia” era uma delícia. O Humberto Cortes marcou o seu tempo com simplicidade, alegria e até uma dose de ingenuidade. Foi um dos grandes comunicadores do rádio brasileiro, disso não tenho dúvidas. Era o nosso “Chacrinha” e serviu de exemplo para muitos profissionais do ramo.
Quem pode ouvi-lo, com certeza, não ficou indiferente aos seus métodos, que não sei se funcionariam na segunda década dos anos 2000, mas, por quase metade do século XX ele foi imbatível. Era a alegria das manhãs patrocinenses.
Crônica publicada no livro "O Som da Memória - I" de 2012 e na Rede Hoje em 2016